domingo, 2 de agosto de 2009

5 - A NOMEAÇÃO DO INSPETOR E A ESCOLHA DO LOCAL

O religioso Pedro Miranda de Machado Malheiro[1], nomeado para o cargo de Inspetor da Colonização estrangeira em 11 de maio de 1818, será o principal artífice quanto ao local em que se estabeleceria o que se acreditava então, ser apenas o primeiro contingente. Descartando o planalto curitibano, opção inicial de Gachet, que se baseara nos relatos de John Mawe[2] quanto a região sul, o Inspetor da Colonização Estrangeira vem a se fixar nas terras pertencentes a Cantagalo. Em sua interpretação, o primeiro grupo, cuja chegada estaria prevista para o ano seguinte, deveria permanecer próximo à corte "por usufruir melhor da proteção real e recorrer mais facilmente às autoridades competentes.”Tal zelo, não de todo injustificado sob a ótica absolutista, encerraria também uma tentativa de vigilância mais eficaz sobre tão grande número de estrangeiros em um país quase desprovido dos mesmos, além do que, se dotaria a província que abrigava a capital do Reino Unido do Brasil, de um expressivo contingente do elemento branco a se erguer como anteparo ante o incremento da população escrava.

A idéia de sedição dos cativos, sempre presente no imaginário das elites, amparava-se na lembrança dos pequenos levantes ocorridos na Bahia a partir de 1807, fomentados em geral por negros islamizados. Sintomaticamente será na antiga capital brasileira que, em 1816, se proporá ao governo "promover a imediata imigração de famílias européias, 100 delas inicialmente, a fim de diminuir o desequilíbrio numérico em favor dos negros”[3], número de famílias este a figurar no tratado referente aos suíços.

Não se desconhece que o fluxo negreiro para o Brasil, mais significativo que o crescimento vegetativo destas populações, acentuara-se com a expansão do café. Ao contrário, pois, de mero substituto do braço cativo na plantação, a vinda organizada de europeus tinha para as elites um caráter de "limpeza étnica" já em 1819, tendência que se firmaria ao longo de todo o século, experimentando o apogeu nas experiências paulistas dos anos oitenta.

Outra razão, de caráter algo obscuro, mobilizará Miranda em seu intento de estabelecer a colônia em tal sitio e a veemência com que vem a defender o território pretendido terá como efeito levantar suspeitas ao menos quanto as suas qualidades de administrador do erário público. Como é sabido, os sertões de Cantagalo, a despeito da proximidade com o Rio de Janeiro e mesmo com as cidades mineiras do ciclo do ouro, haviam sido palco de um povoamento tardio por parte do europeu, contando, pois, ainda em 1818, com terras devolutas ou sobremaneira baratas. Não obstante, decide Miranda adquirir de Monsenhor Almeida, religioso como ele e velho conhecido, a fazenda denominada Morro Queimado, de cerca de três léguas em quadra, por quantia superior a dez contos de réis[4], acrescida de dívida de um conto e quinhentos mil réis.

Em que pese a estranheza de, em um país despovoado o próprio governo proceder a compra de terras por quantia vinte vezes superior ao que custara a mesma ao antigo proprietário, a transação será autorizada pelo próprio rei em 6 de maio de 1818, no mesmo documento em que nomeia seu desembargador do Paço para o cargo de Inspetor da Colonização estrangeira:

"Pedro Machado de Miranda Malheiro, Desembargador do Paço do meu Conselho, Amigo. Eu El-Rei vos envio muito saudar. Tendo aceitado as proposições que me foram feitas por Sebastião Nicoláu Gachet, autorisado pelo Governo do Cantão de Fribourg, pedindo-me o estabelecimento de uma Colônia de várias famílias da Suissa, catholicos romanos, n'este Reino do Brasil; e tendo determinado que ella passe a estabelercer-se no districto de Cantagallo na Comarca desta Cidade, na fazenda do Morro Queimado, que o seu proprietário, Monsenhor Almeida, voluntariamente se offerece a vender para a minha Real Fazenda, por me fazer serviço, e determinando também que vós tivesseis a inspeção desta colonia para cuidardes no seu arranjo e da boa direcção do seu estabelecimento: Houve por bem, por decreto da data desta, nomearvos inspector deste estabelecimento e por esta sou servido autorisar-vos para procederdes à compra da mesma propriedade com o sobredito proprietário della e às mais compras que para o mesmo estabelecimento se fizerem necessárias, para tomardes posse das terras para os meus proprios, e depois repartil-as entre os colonos, mandareis fazer as obras que forem necessarias e tratar do desembarque e acomodações dos mesmos colonos nomeareis pessoa que vos ajude e suppra as vossas vezes, representando nos casos ocurrentes o que fôr necessario pela Secretaria de Estado dos Negócios do Reino, pela qual recebereis as instruções e as mais providências que se fizerem necessárias, pois da vossa intelligencia e zelo pelo meu real serviço, confio que executareis tudo a minha satisfação. Escripta no Palácio do Rio de Janeiro, em 6 de Maio de 1818. REI."[5]

A venda, que "voluntariamente" Monsenhor Antonio José da Cunha Almeida se prontificara a fazer "para servir a El Rei" renderia pois ao abnegado súdito, um extraordinário lucro, não tendo o mesmo passado despercebido a alguns de seus contemporâneos, como Hypolito da Costa, jornalista brasileiro que de seu refúgio londrino, publica no Correio Brasiliense, ácidas críticas à transação e ao projeto imigrantista[6].

De qualquer modo, Gachet, em visita a Morro Queimado, não faz qualquer restrição à escolha do que seria a partir de então seu principal interlocutor no Brasil. Referindo-se às terras que compõem a fazenda, acredita possuírem as mesmas vantagens de "terem numerozos sítios próprios para o pasto do gado, os quais, posto que montuozos e cheios de mattos, bastarão a sustentar muitos milhares de cabeças".[7]

Miranda adquire ainda mais duas sesmarias contíguas, de meia légua em quadra[8], utilizando para todas as transações, de fundos arrecadados pelo próprio governo através da emissão de apólices pagáveis em oito anos. Entre as despesas, previa-se também a construção de casas, prédio destinado à administração da colônia, armazéns, capela, moinho e demais edificações necessárias a manutenção da vila a ser criada. Quanto aos índios que ainda erravam pela região, seriam eles mandados remover por aviso real, ordenando-lhes aldeamento em outro local para “não serem por elles offendidos os colonos”.[9]

As despesas vultosas com esta migração subsidiada, teriam alcançado, segundo Roberto Simonsen[10] a fabulosa quantia de 1.500 francos franceses por colono, o que se nos afigura um exagero do economista, contudo, as somas envolvidas foram de tal ordem expressivas, que o ministro Thomaz Antônio de Villa Nova Portugal, um entusiasta da migração estrangeira, não mais logrou obter de D. João VI autorização para os assentamentos posteriores, previstos no projeto inicial.



[1] Pedro Machado Miranda Malheiro (ou Malheiros), magistrado e religioso, segundo a Enciclopédia Delta Larousse teria nascido em Guimarães, Portugal, em data ignorada. Doutor em cânones pela Universidade de Coimbra e bacharel em filosofia, foi substituto da cadeira de história eclesiástica da mesma universidade e monsenhor acólito da Santa Igreja Patriarcal de Lisboa. Em 1808, era sargento-mor do batalhão dos privilegiados, voluntários de Nossa Senhora de Oliveira, da vila de Guimarães, sendo promovido a major em 1810 pelos serviços prestados à restauração e a defesa do reino. Desembargador do Paço e da Mesa da Consciência, foi ainda chanceler-mor do reino do Brasil em 1817, juiz conservador e deputado da junta de administração do Tabaco em 1818. Neste mesmo ano será nomeado inspetor da colonização estrangeira, cargo que ocupa até 1821, quando volta a Portugal. Uma vez mais no Brasil e aceitando a nacionalidade brasileira, será reconduzido ao posto por Pedro I. Em 1819 D. João VI lhe concederá a propriedade da capela de Santana de Japuíba e bens dotais a ela pertencentes. Ministro do Supremo Tribunal em 1828, faleceu no Rio de Janeiro em 1839 (Pedro Calmon assinala 1838).

[2] John Mawe, mineralogista inglês, fora em 1809 convidado pela coroa a visitar a região de Cantagalo, para averiguar a incidência de prata em Santa Rita do Rio Negro. Sua passagem por Morro Queimado é documentada pelo próprio, em sua “Viagens ao Interior do Brasil”.

[3] Losada, Gioconda – Presença Negra , Uma Nova Abordagem da História de Nova Friburgo - EDUFF

[4] A sesmaria morro Queimado pertencera antes a Lourenço Correa Dias, que nela pretendera criar gado. Este a cedera pouco antes de 1819 a Monsenhor Almeida. Segundo Thomé Maria da Fonseca e Silva (Revista do IHGB, n. 14) os valores da transferência para o governo, avultariam a 11:854$000 .

[5] Transcrito de Pedro Cúrio – Como surgiu Friburgo

[6] Nicoulin, Martin – A Gênese de Nova Friburgo.

[7] Idem.

[8] Foram adquiridas também as fazendas Córrego d’Antas e São José, destinadas a domínio da coroa.

[9] Cansação de Sinimbu, João Lins Vieira – Notícias das Colônias Agrícolas Suissa e Alemã fundadas na freguesia de S. João Batista de Nova Friburgo. Niterói, 1852.

[10] Simonsen, Roberto – A História Econômica do Brasil